lunes, 12 de enero de 2009


Vida & Arte viu
Explosão de sentidos
Soria, espetáculo do Grupo Paraguaio Hara Teatro-Danza, transformou a sala Nadir Papi Sabóia, anexa ao Theatro José de Alencar, num espaço genuinamente sensorial
Aangélica Feitosa
da Redação
06 Dez 2008 - 02h35min


Paraguai, terra de quinquilharias em forma de muambas. De um governo, até as últimas eleições, regido durante mais de seis décadas por um só partido, o Colorado. Se forem essas as imagens vendidas ao restante da América Latina pela tal da globalização sobre o país fronteiriço, o grupo Hara Teatro-Danza, de Assunção, nos convida a um outro território. O espetáculo Soria dá um solavanco nas imagens chapadas para nos acordar para uma forte produção simbólica, readequada da própria identidade indígena e colonizada e reinventada pelo olhar do grupo, formado por pessoas jovens em sua maioria. A peça, cartaz desde quinta e com última apresentação hoje, 6, na Sala Nadir Papi Sabóia, no anexo do Theatro José de Alencar, é uma experiência provocadora de sensações.

O público entra encarrilhado. A sala negra é transformada toda em ritual. Ao canto, vem forte o som da banda do grupo, entoado de batuque e rock’n’ roll. Sons tradicionais e indígenas misturados de bateria. Os músicos, concentradíssimos, salpicam a atmosfera e quem entra na sala tem o corpo envolvido, como uma dança quase involuntária. Música tão vigorosa quanto impressionante. De repente, sem aviso, o espetáculo explode na sua frente. Fica evidente a postura: uma visão indígena respeitosa, vinda de um povo miscigenado que vai narrar o mito da Tierra sin mal. A inspiração na literatura e antropologia, através de Las Palavras Luminosas - Mitos y Cantos Sagrados de Los Indios Guaranies, do antropólogo francês Pierre Clastres, é claramente livre.

A importância de se entender o espanhol para o espetáculo é a mesma necessária do conhecimento do guarani – as duas línguas que compõem o espetáculo. Se primeiro se fez o verbo, em Soria, ele é carne. Ou seja, experimentar a peça, embora possam fugir vários trechos e palavras, nem de longe isso tira o palpável e o sensorial. A direção de Wal Mayans preocupou-se exatamente com isso: em ser bem mais visual e musical, ambas de impacto.

Para contar a história de um sábio, Soria, do mito da Tierra sin mal, o espetáculo caminha junto com os mitos de sua tribo tupi-guarani. As lutas, conquistas, rituais e crenças são poesias em cena. Nele, o homem quer ser homem, mas fazer-se Deus.

O grupo usa luzes, cordas, tecidos, madeiras, pedras e facas... e tiram desses materiais situações, objetos e sentimentos, vivendo o fogo, a luta, o apego à terra, o ritual. Embora esses elementos sejam fortes componentes cênicos, é do corpo dos atores/bailarinos que brota o principal trabalho. Em forma de dança, de movimentos precisos, os integrantes do Hara parecem explorar os próprios limites pessoais. Algumas vezes, os passos lembram a capoeira, em outras, artes marciais. O grupo todo se harmoniza, embora seja maravilhoso ver no palco a atriz Raquel Martinez, há oito anos no Hara e que se destaca pelo trabalho facial. Dois dos rapazes, vale lembrar, são recém-saídos da adolescência e apresentam um trabalho bastante maduro: Nestor Daniel Pereira, 18 anos, e Nestor Patino, 19.

Soria nos remete a uma cidade, quem sabe até mesmo no Brasil, marcada pela dualidade de seu aspecto indígena aceito e, ao mesmo tempo, negado. Da mesma forma, de uma língua incorporada e esquecida e de valores e rituais herdados e desgarrados. Ver o espetáculo e, em seguida, assistir à sua partida deixa na cabeça a sensação de que são muitas as barreiras a serem vencidas até uma plena troca de conhecimentos e produção simbólica entre nós da América Latina. Talvez bem mais semelhantes do que pensamos.

SERVIÇO
Soria - Espetáculo do grupo Hara Teatro-Danza, de Assunção, Paraguai. Última apresentação hoje, 6, às 20 horas, na Sala de teatro Nadir Papi Sabóia (no anexo do Theatro José de Alencar), entrada pela rua 24 de maio, 600. Também no sábado, às 17h30min, demonstração de trabalho do espetáculo La Islã, com o grupo, a partir da obra do escritor italiano Cesare Pavese. Domingo, 7, às 17h30min desmontagem do espetáculo Soria. Todas as atividades são gratuitas. Informações: 3101 2583 e 3101 2566.

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